Na experiência do ano litúrgico, no qual se celebram os mistérios de Cristo, a vivência do Ciclo Pascal ganha relevo, pois este se constitui como fonte de sentido para toda a experiência missionária da Igreja.
Olhando a história, pode-se ver que, de um modo particular, tendo já no primeiro dia da semana o dia regular da memória da morte e ressurreição do Cristo, “dominado pelo evento pascal, o povo cristão reserva, no século II, um domingo particular para a sua celebração” (NOCENT, 1991, p. 154). Deste domingo, celebrando o núcleo da experiência cristã, começa-se a organizar o que mais tarde seria denominado ‘Tríduo Pascal’.
Desta experiência litúrgica, foi crescendo naturalmente a necessidade de preparar melhor a vivência da noite de Páscoa, e isto por meio da oração e do jejum, que encontraram espaço por conta de privilegiar-se a Vigília Pascal, como oportunidade para realizar, com maior frequência, o batismo e a iniciação cristã. “Assim a ascese quaresmal própria de cada cristão abre-se às necessidades daqueles que se encaminham para a fé batismal” (NOCENT, 1991, p. 154).
O jejum – praticado tanto pelos ministros que iriam batizar na Noite Santa, como pelos batizandos – une-se às orientações sobre um jejum praticado nas quartas e sextas-feiras, como pode-se encontrar indicado na Didaqué: “Vossos jejuns não tenham lugar com os hipócritas; com efeito, eles jejuam no segundo e quinto dia da semana; vós porém, jejuai na quarta-feira e na sexta” (DIDAQUÉ, 2012, p. 28).
Desta experiência de oração e jejum, que evoluiu de diversas formas por onde a Igreja estava espalhada, chega-se a uma realidade mais orgânica do período de preparação. “É durante o século IV que se organiza este período de preparação para a Páscoa” (NOCENT, 1991, p. 156). Adrien Nocent indica que um historiador romano chamado Sócrates informa que, em Roma, nos inícios do século V, a Páscoa era precedida de três semanas de preparação.
Porém, é interessante notar que, antes mesmo desta vivência de três semanas, já se tinha uma experiência de seis semanas em preparação para a Páscoa. “Esta preparação, de que possuímos testemunhos certos, começou pouco antes de 384. Tinha caráter prevalentemente ascético e isto se explica pela introdução, na Quinta-feira Santa, da praxe da reconciliação dos penitentes que para ela se tinham preparado, segundo as prescrições de Pedro de Alexandria (+311), durante quarenta dias. Os penitentes davam início a esta preparação no primeiro domingo destas seis semanas (mais tarde antecipada para a quarta-feira imediatamente anterior). Como acabamos de dizer, a reconciliação deles realizava-se na Quinta-feira Santa, quarenta dias depois do início da sua preparação. Daí o nome de Quadragésima” (NOCENT, 1991, p. 156).
Após um longo processo de evolução na celebração do dia de Páscoa e de sua preparação, surge um prolongamento dos quarenta dias. Se antes a Quaresma iniciava-se num domingo, agora passará a ser vivenciada a partir da quarta-feira que a precede.
A Quarta-feira de Cinzas, inserida na vivência de intensificação do jejum e oração próprios da Quaresma, está motivada, de fato, por uma experiência de caráter penitencial na igreja primitiva. “O início da penitência pública imposta aos culpados de algum pecado grave (pecado capital) estava fixado, já desde muito cedo, no início da Quaresma: originariamente na segunda-feira depois do primeiro domingo da Quaresma, e mais tarde na Quarta-feira de Cinzas. Os penitentes tomavam uma veste penitencial e recebiam a cinza na cabeça. A seguir, procedia-se à sua expulsão da Igreja, o que era feito com bastante dramaticidade, mormente na Gália. O costume de tomar traje próprio de penitência e de cobrir de cinza a cabeça, como expressão de luto e de sentimentos de penitência, já era conhecido no Antigo Testamento e na antiguidade pagã” (ADAM, 1982, p. 99-100).
A celebração da imposição das cinzas, se antes acontecia numa vivência penitencial característica de um grupo de pessoas com realidade bem determinada, encontra agora seu lugar na liturgia oficial da Igreja no Tempo da Quaresma. Como afirma Adrien Nocent “pelo fim do século V, tem início a celebração da quarta e sexta-feira que precedem a Quaresma como se dela fizessem parte. E chega-se a impor as cinzas aos penitentes na quarta-feira desta semana anterior ao primeiro domingo da Quaresma, cerimônia que depois será estendida a todos os cristãos” (NOCENT, 1991, p. 158).
Assim, após longo processo de evolução do tempo de preparação para a festa da Páscoa, fixa-se o dia que até hoje é considerado como caput quadragesimae.
Cerimônia das cinzas
Como indica a própria Constituição Sacrosanctum Concilium, do Concílio Vaticano II: “O tempo quaresmal comporta dois aspectos: a memória ou preparação do batismo e a penitência.” (SC n.109). Desta forma, cabe lembrar que a motivação tanto do Tempo Quaresmal como da Quarta-feira de Cinzas foi inicialmente a necessidade de preparação para a celebração do Domingo de Páscoa, que anualmente se celebrava desde o século II na Igreja Primitiva. Dinamizado pela intensificação do jejum e oração, este tempo constituiu-se como momento penitencial e de purificação da Igreja para melhor participar do Mistério de Cristo na Liturgia.
Assim, “a Quaresma não deve ser encarada sob o aspecto negativo, quando sua nota fundamental é a de ser um tempo de alegre preparação para a Páscoa, como o é o Advento para o Natal, pois, além das obras de mortificação e renúncia, o que se exige nesse período é sempre uma abertura maior para com a Palavra de Deus e um zelo mais intenso na participação do culto divino e no exercício de uma caridade fervente e ativa, que exige conversão da mente e do coração, segundo o termo grego empregado no Evangelho: metanoia (cf. Mc 1,15) em todos os domínios da vida” (ADAM, 1982, p. 95-96). Deve-se enfatizar e viver a quaresma numa dinâmica positiva de esperança libertadora no amor de Deus, que a tudo e todos redimiu.
Preparar-se por e com amor, e não por um medo paralisante e desmotivador. Para tanto, a Constituição Sacrosanctum Concilium pede ainda que “acentuem-se os aspectos batismais da liturgia quaresmal, resgatando alguns elementos tradicionais, que foram abandonados” (SC n.109). Ou seja, é a vida nova dada no batismo, a alegria da Ressurreição de Cristo e, n’Ele, a nossa própria que devem nortear a caminhada de preparação para a Páscoa.
Nesta experiência de metanoia, deve-se notar que o caminho de conversão a ser feito precisa alcançar não somente a vida de cada pessoa em particular, mas deve permear a experiência social em todos os seus espaços. A mudança esperada visa alcançar a tudo e a todos, por isso “a catequese deve chamar a atenção para as consequências sociais do pecado, juntamente com a consideração da natureza própria do pecado, que deve ser detestado. Não se deixe também, de lado, nem a ação penitencial da Igreja, nem a oração pelos pecadores. Além de interna e individual, a penitência quaresmal deve ser externa e social” (SC n.109).
Aqui, a Quarta-feira de Cinzas também encontra sua motivação num sinal de penitência e apelo à conversão, pessoal e comunitária, realizado como início do tempo de esperança alegre.
Desde tempos antigos na experiência do povo de Deus, inclusive do Antigo Testamento, aponta-se para a utilização de algum sinal exterior com a finalidade de indicar um processo interno que cada pessoa ou comunidade estavam vivendo. A utilização do sinal das cinzas encontra motivação na própria Palavra de Deus, quando o próprio Jesus se refere a este sinal de penitência: “Ai de ti, Corazin! Ai de ti, Betsaida! Porque se em Tiro ou em Sidônia tivessem sido realizados os milagres que em vós se realizaram, há muito se teriam arrependido, vestindo-se de silício e cobrindo-se de cinza” (Mt 11,21). Também no Antigo Testamento encontram-se referências a esta prática penitencial: Jt 4,15; Jó 42,6; Est 4,1-3; Jr 6,26; 2Sm 3,19.
Olhando a história da liturgia, é interessante notar que a imposição das cinzas, como uma prática bem conhecida já desde a Igreja Primitiva, desapareceu pelo final do século IV enquanto instituição da Penitência Eclesiástica Pública. Porém, “no Sínodo de Benevento (1091), o papa Urbano II recomendou este costume a todas as igrejas. O rito consistia em impor as cinzas sobre a cabeça dos clérigos e dos leigos do sexo masculino, ao passo que se fazia uma cruz na cabeça das mulheres” (ADAM, 1982, p. 100).
Assim, a penitência quaresmal, que tem no sinal das cinzas o seu início, deve abrir-nos ao futuro de Deus que entra na história humana sanando todas as limitações, transformando as relações pessoais e interpessoais, fazendo novas todas as coisas (Cf. Ap 21,5), a fim de que a vida nova da noite de Páscoa brilhe verdadeiramente com todo seu fulgor.
Liturgia da Quarta-feira de Cinzas
Iniciando o caminho de esperança que conduz à celebração da Páscoa do Senhor, a liturgia da Quarta-feira de Cinzas nos abre ao horizonte da misericórdia e da novidade de Deus, que alcança todas as pessoas com sua força libertadora e transformadora, como nos indica o profeta Ezequiel “Dar-vos-ei coração novo, porei no vosso íntimo espírito novo, tirarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei coração de carne” (Cf. Ez 36,26). Recordar e assumir nossa total dependência da misericórdia divina numa atitude penitencial, reconciliar-se com Deus, com os irmãos e irmãs, e com nós mesmos, é lançar-se na liberdade característica dos verdadeiros filhos e filhas d’Ele, liberdade que nos vem no dom pascal (Gl 4,4-7).
A finalidade do Tempo da Quaresma, que tem seu início na ‘celebração de cinzas, já vem expressa nas duas orações indicadas, à escolha, para a bênção das cinzas: ‘Conseguir, pela observância da Quaresma, obter o perdão dos pecados e viver uma vida nova, à semelhança do Cristo Ressuscitado’. Acolher o amor misericordioso de Deus, permitir-se amar pelo Pai que nos refaz à imagem de seu Filho Ressuscitado, e viver no mundo como tal.
Na eucologia da missa de cinzas (‘oração do dia’), que nos coloca em atitude de prontidão e disposição a trilhar o caminho de conversão, tem-se a ‘oração sobre as oferendas’ como um pedido a Deus para que as ofertas mudadas no corpo e sangue de Cristo sejam verdadeiramente penhor da vida futura, e ainda a ‘oração depois da comunhão’, que nos coloca na expectativa da vivência do banquete celeste, pela participação na mesa da Eucaristia; todas elas apontam para a alegre esperança vinda da vida nova trazida por Cristo na sua ressurreição que, por esta celebração, nos preparamos para fazer memória.
A liturgia da Palavra em suas duas leituras (Jl 2, 12-18 e 2Cor 5,20-6,2) apresenta, antes de qualquer convite à conversão, a própria misericórdia de Deus, disposto a perdoar, a ouvir a pessoa e reconciliar-se com ela. Deus tem sede de reconciliação com o seu povo e faz com que seu povo tenha sede d’Ele. Ele mesmo por meio do profeta e do apóstolo convida a pessoa a refazer um caminho, o caminho de volta à casa, ao convívio d’Ele que é, no dizer do profeta Joel, “benigno e compassivo, cheio de misericórdia, inclinado a perdoar o castigo” (Cf. Jl 2,13).
Como caminho a ser percorrido de volta para a casa do Pai, Jesus indica as três realidades que servem de orientação para a caminhada de conversão: esmola, oração, jejum (Mt 6,1-6.16-18). Entretanto, alerta-se para que o valor destas três práticas não seja medido por reprodução de gestos vazios, permeados de um sentimento egocêntrico, mas sejam preenchidos de uma decisão interior, numa opção fundamental por Ele, que é capaz de nos devolver a nós mesmos e nos situar numa relação sadia com as outras pessoas. A conversão deve nos abrir não só no sentido vertical, mas também em sentido horizontal. Deixar-se abraçar pela misericórdia de Deus leva-nos a dilatar nosso coração para a vivência do cuidado na relação com as pessoas.
Percebe-se desta forma que é sob a alegria e luz da Páscoa de Jesus que se deve viver o tempo de penitência e conversão, a Quaresma, que se inicia na celebração de cinzas. É a esperança que permeia o caminho dos que, ouvindo o chamado de Deus para um retorno necessário a Ele, colocam-se numa atitude de humilde autocrítica e se propõem a entrar no processo de ‘metanoia’.
A sede que Deus tem de amar a cada pessoa que se põe distante de sua misericórdia (que nunca se afasta de nós) abre um horizonte de futuro capaz de sanar toda marca que o mal provocara na caminhada, e torna-se um ‘clamor’ do próprio Criador por aquele no qual insiste em depositar ‘sua fé’: a pessoa humana. É por este ‘não desistir’ de Deus que sempre poderemos ter a certeza de que “é agora o momento favorável, é agora o dia da salvação” (Cf. 2Cor 6,2).
REFERÊNCIAS
ADAM, A. O ano litúrgico: sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.
AUGÉ, M, et al. O Ano Litúrgico: história, teologia e celebração. São Paulo: Edições Paulinas, 1991.
BARBAGLIO, Giuseppe. Rinaldo Fabris. Os Evangelhos I. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2011.
COMPÊNDIO DO VATICANO II. Constituições, Decretos, Declarações. 29ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
DIDAQUÉ: Catecismo dos primeiros cristãos. 10ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
Padre José Cleiton Barbosa