O Papa Francisco assinou a nova Encíclica “Fratelli Tutti” (“Todos Irmãos”), no sábado, dia 03 de outubro de 2020, na Basílica inferior (túmulo) de São Francisco, em Assis, sobre a fraternidade e a amizade social. Logo, foi publicada no domingo, dia 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis.
Inicialmente, o Papa lhe dá o título e resume o seu grande objetivo: “FRATELLI TUTTI” – escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se a seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor do Evangelho. O desejo do Santo Padre é fazer renascer, entre todos, um anseio de fraternidade (cf. n. 8). Uma fraternidade universal aberta a todos, a todas as pessoas de boa vontade (cf. n. 6).
O terreno sobre o qual a “Fratelli Tutti” floresceu foi preparado por relações “inter-religiosas”. O Papa confessa que o estímulo para escrever a “Fratelli tutti” nasceu de um muçulmano. São palavras do Papa: “Senti-me especialmente estimulado pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem me encontrei, em Abu Dhabi, para lembrar que Deus ‘criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos’” (n. 5). A atenção é não ficar somente no “contexto” de que surge, mas também da “nova demanda” que o Papa Francisco ao mesmo tempo assume e formula.
Depois da Laudato Si, inspirada em São Francisco de Assis, o Santo Padre se volta novamente para ele ao tratar da fraternidade e da amizade social. O próprio Papa explica que a motivação foi por ver na vida do Santo de Assis um fato que dá a cada ser humano um exemplo grandioso. Ei-lo: “Na sua vida, há um episódio que nos mostra o seu coração sem fronteiras, capaz de superar as distâncias de proveniência, nacionalidade, cor ou religião: é a sua visita ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito. A mesma exigiu dele um grande esforço, devido à sua pobreza, aos poucos recursos que possuía, à distância e às diferenças de língua, cultura e religião. Aquela viagem, num momento histórico marcado pelas Cruzadas, demonstrava ainda mais a grandeza do amor que queria viver, desejoso de abraçar a todos. A fidelidade ao seu Senhor era proporcional ao amor que nutria pelos irmãos e irmãs. Sem ignorar as dificuldades e perigos, São Francisco foi ao encontro do Sultão com a mesma atitude que pedia aos seus discípulos: sem negar a própria identidade, quando estiverdes ‘entre sarracenos e outros infiéis (…), não façais litígios nem contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de Deus’. No contexto de então, era um pedido extraordinário. É impressionante que, há oitocentos anos, Francisco recomende evitar toda a forma de agressão ou contenda e também viver uma ‘submissão’ humilde e fraterna, mesmo com quem não partilhasse a sua fé” (n. 3).
Não se pode esquecer que, segundo a natureza, todos somos filhos de Deus; há uma pertença de cada um dos seres humanos à fraternidade universal. Todos somos iguais e irmãos entre nós. Nada justifica racismo, discriminação de ordem social, religiosa, econômica… entre as pessoas. As diferenças são secundárias, devendo ser superadas pela solidariedade e fraternidade universais. No mundo, e entre as pessoas, somente deveria haver diálogo e ajuda mútua, jamais ódios, desavenças, violências e guerras, jogando irmãos contra irmãos. Isso não está no plano de Deus.
Algumas tendências do mundo atual, mundo fechado, atrapalham ou mesmo impedem a fraternidade universal (n.9). São muitas as sombras: as regressões na história, ressurgimento de nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos, ideologias egoístas, nacionalistas e fechadas ao próximo (cf. n. 11 e 37); o mundo globalizado, que se desinteressa pelo bem comum e, por isso, em vez de aproximar, afasta as pessoas. “A política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes econômicos transnacionais, que aplicam o lema ‘divide e reinarás’” (n. 12). Perde-se a identidade espiritual e social, com seus grandes conceitos norteadores; semeia-se o desânimo e a polarização, especialmente no campo político. Também os defensores do meio ambiente ou da “casa comum” são ridicularizados (cf. n. 17).
Também existe a “cultura do descarte”, em que “as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se ‘ainda não servem’ (como os nascituros) ou ‘já não servem’ (como os idosos). Tornamo-nos insensíveis a qualquer forma de desperdício, a começar pelo alimentar, que aparece entre os mais deploráveis”.
Há, ainda, uma obsessão pelo próprio bem-estar que os demais são esquecidos; apareceu também a Covid-19 que poderá ajudar a humanidade a repensar o seu futuro e a trocar o exagero do “eu” pela grandeza do “nós” (cf. n. 31-35); no campo virtual, tem-se um paradoxo: as pessoas podem perder sua intimidade expondo-se, mas também há o isolamento de quem troca o virtual pelo real, e é nas redes sociais que, quase sempre, surgem ofensas contra o próximo. É preciso romper essas barreiras e encontrar-se, de fato, com o outro na sadia convivência (cf. n. 42-50). O Santo Padre convida à esperança. Caminhemos na esperança!” (n. 55).
O Papa reflete a conhecida parábola do Bom Samaritano (cf. Lc 10, 25-37), “com a intenção de procurar uma luz no meio do que estamos a viver de tal maneira que qualquer um de nós pode deixar-se interpelar por ela” (n. 56). “A parábola mostra-nos as iniciativas com que se pode refazer uma comunidade a partir de homens e mulheres que assumem como própria a fragilidade dos outros, não deixam constituir-se uma sociedade de exclusão, mas fazem-se próximos, levantam e reabilitam o caído, para que o bem seja comum. Ao mesmo tempo, a parábola adverte-nos sobre certas atitudes de pessoas que só olham para si mesmas e não atendem às exigências iniludíveis da realidade humana” (n. 67).
Ao olhar, no entanto, o sacerdote, o levita e o samaritano, somos confrontados. Daí a indagação firme do Santo Padre: “Com quem te identificas? A qual deles te assemelhas? Precisamos reconhecer a tentação que nos cerca de se desinteressar dos outros, especialmente dos mais frágeis. Habituamo-nos a olhar para o outro lado, passar à margem, ignorar as situações até elas nos caírem diretamente em cima” (n. 64).
Nós, como o Bom Samaritano, “gozamos dum espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e transformações. Sejamos parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas” (n. 77). E mais: fazer tudo por amor de Deus, ou seja, sem esperar recompensa humana alguma: “O samaritano do caminho partiu sem esperar reconhecimentos nem obrigados. A dedicação ao serviço era a grande satisfação diante do seu Deus e na própria vida e, consequentemente, um dever. Todos temos uma responsabilidade pelo ferido que é o nosso povo e todos os povos da terra. Cuidemos da fragilidade de cada homem, cada mulher, cada criança e cada idoso, com a mesma atitude solidária e solícita, a mesma atitude de proximidade do bom samaritano” (n. 79). Cristo está nos abandonados e excluídos (cf. Mt 25,40.45).
Aprendamos, pois, a olhar os problemas de nosso tempo e a enfrentá-los por amor de Deus, que é também amor ao próximo.
É preciso amar de verdade e concretamente, diz o Papa. Ninguém deve se isolar, somos “todos irmãos (Mt 23,8)” (n. 95). O racismo é “um vírus que muda facilmente e, em vez de desaparecer, dissimula-se, mas está sempre à espreita” (n. 97). “Todo ser humano tem direito de viver com dignidade e desenvolver-se integralmente, e nenhum país lhe pode negar este direito fundamental” (n. 107). Somos, portanto, chamados a dar o melhor aos outros na verdadeira solidariedade (cf. n. 112 e 114), sem nos esquecermos do cuidado para com a “casa comum”, conforme a Laudato Si.
O Papa se volta a um problema que lhe é muito especial: o dos migrantes. O ideal seria ninguém deixar a sua terra natal, mas se, forçado por algumas circunstâncias específicas, as pessoas tiverem de buscar outras regiões, que vigore para elas a fraternidade universal: onde quer que esteja ou vá, encontre irmãos e irmãs capazes de lhes aplicar concretamente os verbos: “acolher, proteger, promover e integrar” (n. 129).
“A ajuda mútua entre países acaba por beneficiar a todos” (n. 137).
Francisco se volta para a gratuidade cristã que é, em síntese, fazer o bem sem esperar nada em troca. “Quem não vive a gratuidade fraterna, transforma a sua existência num comércio cheio de ansiedade: está sempre a medir aquilo que dá e o que recebe em troca” (n. 139-140). Repensemos, à luz do Evangelho, nossa relação com todos os que passam por nós no dia a dia.
Um convite muito prático é feito a superar as “más” ou até as consideradas “boas” políticas por uma “melhor”. Que é essa política melhor? – É “a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum” (n. 154; cf. n. 176-177). A verdadeira caridade inclui tudo e nada desperdiça do que pode servir – de verdade e não por interesses escusos – o próximo. “É necessário fazer crescer não só uma espiritualidade da fraternidade, mas também e ao mesmo tempo uma organização mundial mais eficiente para ajudar a resolver os problemas prementes dos abandonados que sofrem e morrem nos países pobres” (n. 165). Também a política econômica ativa deve ser acompanhada pela solidariedade e confiança mútua, tendo a dignidade humana no centro (n. 168) e o apoio ao chamados “movimentos populares” (n. 169).
Em tudo, há de reinar a caridade, síntese de toda lei (cf. Mt 22,36-40). Pois só “a caridade pode construir um mundo novo” (n. 183), à luz da razão e da fé, sem relativismos (cf. n. 185).
O Papa reafirma: dialogar (cf. n. 198) e promover, apesar das dificuldades, a “cultura do encontro” (n. 215; cf. n. 216-217). A “falta de diálogo supõe que ninguém, nos diferentes setores, está preocupado com o bem comum, mas com obter as vantagens que o poder lhe proporciona ou, na melhor das hipóteses, com impor o seu próprio modo de pensar” (n. 202).
Somos convidados a respeitar os povos nativos (cf. n. 220), promover a reconciliação e o encontro (cf. n. 229 e 232). E como recomendação apresenta-se: a amizade social com os mais pobres (cf. n. 233), uma vez que a desigualdade e a falta de inclusão social pode ser geradora de violência (cf. n. 234-235); o perdão e a reconciliação (237-239), superando o mal com o bem (cf. n. 243); não se esquecer de fatos graves da história para não repeti-los; condena a guerra injusta e pede que elas nunca mais aconteçam, pois todas deixam o mundo pior do que antes (cf. n. 256-262); recrimina a pena de morte, a prisão perpétua e as ações extrajudiciais (cf. n. 263-268) e defende um mundo de paz.
Trata-se de um texto denso, rico de indicações para a superação das contradições presentes na sociedade atual e que foram escancaradas com a pandemia do coronavírus. Traz também um forte apelo à paz, justiça e fraternidade.
A grande Encíclica Fratelli Tutti, sobre a fraternidade, nasce da urgência de uma grande resposta ao drama do nosso tempo: drama ambiental, drama da dignidade do ser humano, e vem se integrar aos ensinamentos da Doutrina Social da Igreja.
Dom Francisco de Assis Dantas de Lucena
Bispo Diocesano de Nazaré