Entre eles não haviam necessitados (At 4, 34)
A cada novo ano, temos o grande privilégio de nos retirarmos com a Igreja. Guiados pelo Espírito, acompanhamos Cristo no deserto durante os quarenta dias de oração intensa, jejum, meditação da vontade do Pai e fortalecimento interior; tudo isso para anunciarmos a chegada do tempo novo do Reino (Mc 1, 12-15). Assim, a Quaresma se apresenta extremamente rica e nos coloca diante da práxis de Jesus: a esmola, a oração e o jejum (Mt 6, 1-6. 16-18).
Nestas poucas palavras, queremos refletir sobre a primeira grande dimensão que os ensinamentos do Mestre oferecem: a caridade. Para tal, veremos que a Igreja é portadora de memória: ela não pode deixar de lado os que estão à margem, a oportunidade de oferecer dignidade aos que estão no caminho conosco, a fim de que nos livremos do egoísmo e nos aproximemos da eternidade. Essa é uma oportunidade sensata de aprendermos que o egoísmo destrói nossas relações, em todos os âmbitos.
Os Evangelhos narram a vida pública de Jesus, o chamado dos primeiros discípulos e como eles foram instruídos dentro das circunstâncias próprias de seu tempo. A multiplicação dos pães, sinal presente nas quatro narrativas (Mc 6, 30-44 ; Mt 14, 13-21; Lc 9, 13; Jo 6, 1-13;), demonstra o cuidado que se fez gesto concreto. “Dai-lhes vós mesmo de comer” é uma ordem que salta aos olhos, oferecendo meios de nos colocarmos a serviço dos que têm fome.
O tempo passou, mas as necessidades que tinham voz forte na Galileia perpassaram os tempos, os sistemas de governo, o avanço econômico e a globalização. Para permanecer fiel ao chamado que recebeu, a Igreja continua trazendo ao centro das discussões, e da ação, as inúmeras pessoas que não possuem o alimento cotidiano. Longe de viés político ou da ideologia classicista, manter vivo na memória o que o Mestre fez e disse é um dos desdobramentos de sua missão intrínseca. Ainda mais no período quaresmal, quando a revisão de vida ganha mais espaço e faz cada fiel refletir sobre o seu comportamento diante dos que sofrem.
Colocando-nos no lugar do outro, descobrimos que não são números ou nomes que preenchem listas e planilhas. São homens e mulheres feridos em sua dignidade, por serem obrigados a sobreviver sem o mínimo. Em 2018, o Brasil tinha registro de mais de 10 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave[1]. Usando palavras mais familiares ao vocabulário, os brasileiros que passam fome ultrapassam os 10 milhões. Vale lembrar que esses dados antecedem a pandemia.
O Papa Francisco nos ajuda a entender a importância de estender a mão e diz: “Não podemos viver tranquilos, quando um membro da família humana é relegado para a retaguarda, reduzindo-se a uma sombra”[2]. Entretanto, a reflexão precisa ser ainda mais abrangente: a dignidade humana não estará presente se for reduzida a puro assistencialismo. Ofertar pão, sem afeto, sem respeito, sem compreensão e sem reconhecimento da pessoa humana, torna ainda mais complexo o problema.
A Quaresma nos leva ao exercício de confrontarmos nossas próprias escolhas. Então, com sinceridade: Esquecemos os que passam fome? Temos buscado meios de abrandar suas dores, de restabelecer sua dignidade? Ou ainda: colaboramos na conscientização das reais necessidades que nos cercam? A fala do Papa Francisco também contempla tais questões: “Não devemos improvisar instrumentos de caridade. Há necessidade de meios diários”[3]. Urge levantar a cabeça, erguê-la de nosso umbigo e, como Jesus, estarmos atentos às necessidades que nos cercam. A partir dessas orientações do Santo Padre, percebemos que a mudança deve começar imediatamente, com as condições de que dispomos: ajudando àqueles que batem em nossa porta, os que encontramos nas ruas, contribuindo com ONGs e outras instituições de caridade.
Desta maneira, o ensinamento de Jesus estará presente em nossa sociedade, lembrado pela sua Igreja, guardiã de sua memória, encontrando caminhos entre as crises para gerar dignidade e tornar inexistente a cultura do egoísmo. A esmola sincera e verdadeira conduz ao crescimento humano e espiritual, individual e comunitário. Partilhando na mesa dos irmãos, estaremos gerando a comunhão quista por Ele (Jo 17, 21). Que nesta Quaresma sejamos movidos pela compaixão de Cristo, que se faz pobre para nos enriquecer (2 Cor 8, 9).
[1] TORRES, R. Números indicam volta ao mapa da fome. Outra Saúde, 2020. Disponível em: <https://outraspalavras.net/outrasaude/numeros-do-ibge-indicam-volta-ao-mapa-da-fome/#:~:text=O%20Mapa%20inclui%20pa%C3%ADses%20onde,E%20isso%20antes%20da%20pandemia.>
[2] PAPA FRANCISCO. Mensagem para o IV Dia Mundial dos Pobres, 2020. Disponível em: <http://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/poveri/documents/papa-francesco_20200613_messaggio-iv-giornatamondiale-poveri-2020.html>
[3] Ibidem.
Por Pe. Romário José da Silva