Jejuar, tradicionalmente, sempre foi (será que continuará sendo?), por definição, a privação parcial ou total de alimentos, que pode ser realizada por razões as mais diversas: medicinal, estética, filosófica, política, terapêutica e religiosa.
O Jejum Religioso é mais do que uma forma de higiene ou saúde, é um rito religioso, um culto que o ser humano, em determinadas situações, presta a Deus. É um meio de purificação e autocontrole pelo qual, superando a necessidade e o prazer do alimento, a pessoa se detém no que é realmente essencial. Portanto, o Jejum Quaresmal só tem sentido se for praticado em razão da Essência de nossa fé: a Páscoa do Senhor Jesus.
O Prefácio da Quaresma nos lembra que:
“O Jejum e Abstinência que praticamos, quebrando nosso orgulho, nos convidam a imitar Vossa Misericórdia repartindo o pão com os necessitados”.
E mais: a Penitência Quaresmal tem poder para corrigir os nossos vícios, elevar nossos sentimentos, fortificar nosso espírito fraterno e, ainda mais, em Cristo, garantir uma eterna recompensa. Tudo isso para que, como diz a oração coleta da quarta-feira de cinzas:
“a Penitência nos fortaleça no combate contra o espírito do mal”.
A compreensão cristã do Jejum pode ser vista, de forma simplificada, em duas dimensões práticas e históricas, identificadas na Tradição de Israel e na Experiência de Jesus.
Na tradição do povo judeu, o jejum tem lugar obrigatório, garantido entre os seguidores da Lei Judaica. O jejum era, sem dúvida, um costume judaico usado para castigar a carne, em sinal de luto, de tristeza, em dias de crises e lutas. Certos dias do calendário eram consagrados a um jejum nacional, dos quais o mais destacado era o Dia da Expiação (Lv 16,29-31; 23,27-32).
Podemos afirmar que, ao longo do tempo, o jejum como expressão religiosa foi perdendo as suas características essências, tornando-se algo apenas vivido na exterioridade, incorrendo em alguns erros e escondendo muitos perigos, principalmente aquele de poder, a partir do jejum, reivindicar certos “direitos” diante de Deus. Por esse motivo, o profeta denuncia a falsidade do formalismo e prega o verdadeiro jejum que Deus quer.
E, neste contexto, a inspiração do profeta Isaías clama, proclama e profetiza aos quatro cantos, conforme lemos em Is 58,1-10. Aliás, todo este capítulo 58 corresponde à situação do fim do séc. VI a.C, quando os edifícios destruídos são, agora, antigas ruínas (v. 12), e a cidade está pouco restaurada. A comunidade decepcionada procura, em vão, obter, pelo jejum, a realização das magníficas promessas dos caps. 40–55. O profeta lhe responde que não será atendida, se a isso não ajuntar a prática da justiça social. Nos versículos 3 e 4, os jejuadores, decepcionados, proferem palavras duras dirigidas a Deus:
“De que serve jejuar, se com isso não Vos importais? E mortificar-nos, se nisso não prestais atenção?”.
E Deus, pela boca do profeta, responde:
“É que no dia de vosso jejum, só cuidais de vossos interesses, de vossos negócios, e oprimis todos os vossos operários. Passais vosso jejum em disputas e altercações, ferindo, com o punho, o pobre. Não é jejuando assim que fareis chegar lá em cima vossa voz”.
E o oráculo continua bradando palavras que Israel não ouviu nem praticou:
“O jejum que me agrada porventura consiste em o homem mortificar-se por um dia? Curvar a cabeça como um junco, deitar sobre o saco e a cinza? Podeis chamar isso um jejum, um dia agradável ao Senhor? Sabeis qual é o jejum que eu aprecio? – diz o Senhor Deus: é romper as cadeias injustas, desatar as cordas do jugo, mandar embora livres os oprimidos, e quebrar toda espécie de jugo. É repartir seu alimento com o esfaimado, dar abrigo aos infelizes sem asilo, vestir os maltrapilhos, em lugar de desviar-se de seu semelhante”.
E o Senhor conclui:
“…Se expulsares de tua casa toda a opressão, os gestos malévolos e as más conversações… tua luz se levantará na escuridão, e tua noite resplandecerá como o dia pleno”.
A EXPERIÊNCIA DE JESUS
Mc 2,18-22: perguntaram a Jesus porque seus discípulos não jejuavam. E Jesus responde que os seus discípulos não estavam em jejum porque Ele ainda estava presente no meio deles, e isso era motivo de festa e de alegria. Quando chegasse o dia em que Ele não estivesse mais com eles, aí deveriam jejuar, em preparação para sua nova vinda; porém, um jejum diferente do legalismo religioso antigo, uma vez que os fariseus tinham transformado o jejum num espetáculo, uma prática estereotipada, sem conversão interior.
O Jejum não é um ritual mecânico para ser praticado simplesmente com o propósito de jejuar, mas quando houver a necessidade de uma comunicação mais íntima com o Senhor, como no tempo da Quaresma.
Jesus não era contra o Jejum, Ele jejuou, diversas vezes, na solidão dos desertos de Israel. E com a Sua prática deu significado novo às praticas e formas antigas de jejuar. Além do mais, Jesus falou que haverá recompensa sim, que virá pela forma e intenção do jejuar, como se lê no capítulo sexto de Mateus:
“Quando jejuardes, não fiqueis com o rosto triste como os hipócritas. Eles desfiguram o rosto, para que os homens vejam que estão jejuando. Em verdade, vos digo: Eles já receberam a sua recompensa”.
Por isso, Cristo continua admoestando os discípulos, dizendo:
“Quando tu, porém, jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que os homens não vejam que estás jejuando, mas somente teu Pai, que está oculto. E o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará a recompensa” Mt 6,16-18).
Então, o jejum deve ser regido pelo coração e não pelos aspectos exteriores. Mesmo sabendo que Jesus é o ausente/presente (na Eucaristia, na Palavra, nos pobres…), o Jejum serve também para alimentar a alegre expectativa Dele, enquanto esperamos a sua vinda futura. O jejum que praticarmos deve ser ofertado ao Senhor, por amor e como um sacrifício de louvor a Ele, para assim sermos agradáveis a Deus e não aos homens.
Jesus ensinava que o jejum é para ser feito em particular e não para impressionar os outros. Ele também ensinava que o jejum é para ser feito em ocasiões apropriadas, isto é, em tempos de aflição (Lucas 5,33-39), quando a tristeza, a culpa ou a necessidade de uma comunicação mais íntima com o Senhor pedem isso; então o jejum deve ser praticado.
Os cristãos primitivos ocasionalmente jejuavam, quando as circunstâncias eram propícias. Por exemplo, em Atos 13,2-3, a igreja jejuava quando precisava escolher discípulos que seriam enviados em missão:
“Enquanto celebravam o culto do Senhor, depois de terem jejuado, disse-lhes o Espírito Santo: ‘Separai-me Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho destinado’. Então, jejuando e orando, impuseram-lhes as mãos e os despediram”.
Em Atos 14,23, as igrejas jejuavam para indicar os seus anciãos:
“Em cada igreja instituíram anciãos e, após orações com jejuns, encomendaram-nos ao Senhor, em quem tinham confiado”.
Nos dois episódios narrados acima, o Jejum sempre precede a tomada de decisões. As primeiras comunidades cristãs praticavam o jejum como uma forma de alcançar a unidade de mentes e corações, o consenso nas decisões, entendendo nisso a manifestação da vontade do Senhor.
Jejuar nunca deveria ser pensado como um meio de manipular o favor de Deus ou um modo de fazer com que Deus fique mais atento aos nossos pedidos. Antes de tudo, jejuar é um meio de nos aproximarmos do Senhor, orando e meditando no Senhor, sem interrupção para tomar uma refeição. Ou então, fazer uma refeição leve, no final do dia, chamada pelos antigos de CONSOADA (leve refeição noturna, sem carne, que se toma em dia de jejum).
E o Papa Francisco cravou a forma mais contemporânea de jejuar, quando, com a objetividade que lhe é peculiar, Sua Santidade, na mensagem para a Quaresma de 2021, intitulada: “Vamos subir a Jerusalém…” (Mt 20,18), pediu a todos para, nesta Quaresma, dar um sentido novo ao Jejuar, quando afirmou:
“jejuar significa libertar a nossa existência de tudo o que a atravanca (a nossa vida), inclusive da saturação de informações – verdadeiras ou falsas – e produtos de consumo, a fim de abrirmos as portas do nosso coração Àquele que vem a nós pobre de tudo, mas ‘cheio de graça e de verdade’ (Jo 1, 14): o Filho de Deus Salvador”.
Pronto! Papa Francisco falou e disse! E atualizou, de forma contundente, o nosso Jejum 2021. Que assim seja!
Por Pe. José Ramos da Silva
(Pároco de São Sebastião de Limoeiro/PE)